Alphaville é um filme meio sci-fi meio noir produzido em 1965 por Godard em que somos
inseridos na trama de Lemmy Caution, um detetive das chamadas “terras estrangeiras” que se
infiltra em Alphaville (uma cidade distópica futurista controlada por um computador chamado
Alpha 60) como Jackson, um jornalista de NY. O plano de Lemmy é encontrar o colega de
profissão Henry Dickson, investigar o desaparecimento de outros cinco agentes e destruir o Alpha
60 e o seu criador para evitar uma Guerra intergaláctica.
Nessa sociedade planejada tudo é controlado pelo Alpha 60, caracterizando um verdadeiro
totalitarismo tecnocrático onde o coletivo é exaltado em detrimento dos individuos, os quais
tiveram seus horizontes artificialmente limitados e seus sentimentos e emoções aniquilados. Alpha
60 enuncia que “O presente é a forma de toda a vida (…) antes de nós nada existiu aqui”,
configurando uma anulação da memória, da existencia individual e, portanto, de qualquer eventual
resistencia.
Afinal, pensar criticamente em Aphaville é proibido. Sociólogos, professores, poetas,
filósofos e artistas são exilados, internados, executados ou impelidos a cometer suicídio. Um
personagem é executado por lamentar a morte de sua esposa pois o lamento também é proibido
segundo a biblia de Alphaville, que, na verdade, é um dicionário onde diariamente palavras sāo
proibidas. Amor, paixāo, lamento, ternura, coragem, consciência. O porquê enquanto pergunta
(por quoi) é abolido, deixando lugar apenas ao porquê enquanto resposta (parce que). Palavras que
desencadeiem sentimentos, sensações ou questionamentos sāo restritas pelo super-olho
onipresente, na garantia da manutençāo da ordem e do que o sistema autoritário chama de pessoas
normais, mas que Lemmy chama de mutantes.
A imaginação não-policiada é o inimigo soberano, portanto na distopia
de Alphaville ninguém permitirá que você sinta nem que voce sonhe, inclusive no início do filme,
quando Lemmy chega ao quarto do hotel a mulher que o acompanha indica o local dos
tranqüilizantes no banheiro. Ninguem permitirá tambem que voce chore.
É na busca pelo ex-agente secreto Henry Dickson que Lenny encontra sua principal arma,
dada por Henry antes de sua morte, o livro “Capital da Dor” do poeta Paul Éluard. Assim, Lemmy
se torna o guardião das palavras proibidas e quando interrogado pelo Alpha 60 na central de
controle afirma que “a poesia transforma a noite em luz”, e confunde a máquina, que compreende
palavras isoladas, mas que nāo compreende figuras de linguagem e lirismos. Ao mesmo tempo
que confunde e desafia o Sistema, salva a personagem Natasha, filha do criador do Alpha-60, ao
ler o mesmo livro e resgatar nela a sensaçāo da palavra, mesmo sem a compreensāo do seu
significado. O milagre do resgate da memória da palavra através da poesia.
Eu assisti Alphaville pela primeira vez há alguns anos e ele se tornou meu filme preferido
de Godard e um dos meus preferidos de todos. Mas hoje, ao assistí-lo novamente, ele me
proporcionou algo novo, uma triste analogia com a realidade brasileira atual. Comecando pelo
nome Alphaville, o qual foi utilizado pra fazer referencia a condominios fechados brasileiros em
que os moradores tem a sua “liberdade” vigiada constantemente, mas são compensados por um
futuro seguro e distante da presença de indesejáveis intrusos. Ficção e realidade numa relação
simbiótica com a cultura do medo, vista no filme atraves do isolamento, alienação e automação
dos habitantes, que ocupam não-lugares o tempo todo: zonas de transição como corredores,
escadarias, escritórios, quartos de hotel e elevadores.
Mas o que mais me chamou atençāo nessa coincidência com a realidade brasileira atual é
a correlaçāo entre a proibiçāo do pensamento critico, da desconstruçāo, do questionamento (o por
que?) e das palavras com o movimento “Escola sem partido”, consubstanciado nos PL 193/2016,
PL 1411/2015 e PL 867/2015. Projetos que visam limitar a atuação dos professores para impedir
que eles “promovam suas crenças ideológicas e partidárias em sala de aula”, criminalizando o
chamado “assédio ideológico”.
Uma verdadeira afronta ao princípio constitucional do pluralismo de ideias e de concepções
pedagógicas, assim como o da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento,
a arte e o saber, considerando como válidos determinados conteúdos que servem à manutenção
do status quo e como doutrinários aqueles que representam qualquer visão crítica. Um projeto para
silenciar vozes, buscar estabilidades e criar novos espaços de conforto e conformismo social,
cultural e intelectual. A instabilidade, o diferente, a emergência, a diversidade incomodam.
Discutir as desigualdades sociais, o feminismo, a discriminação sexual, entre outros assuntos, é
provocar instabilidades nesse sistema de histórias unicas.
Ou seja, uma tentativa de transformaçāo dos cidadāos brasileiros em zumbis autômatos
como aqueles de Alphaville, ao impedir a evoluçāo da sociedade através de uma revoluçāo no
conhecimento, como tentado quando do Plano Nacional de Educaçāo de 2010 e os respectivos
planos estaduais e municipais, os quais abordavam as questões equitativas de gênero e de
orientaçāo sexual.
Contudo, em 2013 o plenario do Senado suprimiu do Plano as palavras gênero e orientaçāo
sexual, bem como toda a flexāo de gênero do texto, adotando o neutro masculino universal (o falso
neutro). Reflexo do medo da demonizada “ideologia de genero”, uma falácia que induziria à
destruição da família “tradicional”, à legalização da pedofilia, ao fim da “ordem natural” e das
relações entre os gêneros, e que nega a existência da discriminação e violência contra mulheres e
pessoas LGBT. Uma desonestidade politica e midiatica já que a unica coisa que a educaçāo sexual
e em iguadalde de genero quer é contribuir na superação das desigualdades educacionais que
comprovadamente existem entre os gêneros, em consonância com décadas de debates, acordos e
políticas públicas estabelecidas democraticamente. É o brasil da contra-māo, da preguica
intelectual e da censura das palavras, da negaçāo de que educar é sim um ato politico.
Godard em 1965 já prevê um mundo didatorial, tecnicista, insensível e acrítico, em que
nossa cogniçāo é usurpada e nossa emoçāo feita refém em preto-e-branco, como o audiovisual do
clássico neo-noir. O cinza como um fim em si mesmo também retrata o tom (ou a ausência dele)
da sociedade de Alphaville e os instantes daquelas vidas mecânicas e autômatas. Mas eu prefiro
acreditar em Mateus Aleluia quando ele anuncia: “nao aceito quando dizem que o fim é cinza, se
eu vejo cinza como um início em cor”, afinal, segundo ele, o amor, como a fênix, há de renascer
das cinzas. E Alphaville, como a primeira letra do alfabeto grego, é apenas o principio do verbo.
Acreditemos. Resistamos.
Ana Luiza Tinoco
Mestra em ciências criminais na universidade de Coimbra e doutoranda em estudos de gênero no Instituto de Ciências Sociais e Politicas da Universidade de Lisboa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário