Miss representation

"Miss representation” já inicia acertando no título, o qual traz um trocadilho excelente entre as ideias de representação ideal e representação errônea, como se a vida fosse um macrocosmo do concurso “Miss Universo”, em que as mulheres estão em eterna competição umas contra as outras pelo prêmio do príncipe-encantado-macho-alfa-provedor.
A ex-atriz e diretora Jennifer Siebel Newson traz como fio condutor do documentário a sua experiência pessoal, ao narrar sobre suas dificuldades e desafios como mulher e profissional, principalmente no que toca a pressão de ser constantemente julgada por sua beleza e não pela sua competência. Nesse sentido, Newson questiona a excessiva objetificação/coisificação e sexualização de mulheres nas mídias e artes (televisão, cinema, marketing, literatura, imprensa, artes plásticas, dentre outros meios), concluindo que a arte representa a vida, mas que a vida imita a arte, ou seja, nós absorvemos e somos reflexos daquilo que consumimos, e, dessa forma, ao engolir estereótipos, vomitamos estereótipos. A gravidade se dá quando ao repetir de forma taylorista estereótipos, sem refletir sobre eles, criamos produtos culturais e discursos herméticos, deixando pouco espaço para novas representações.
É exatamente sobre isso que se dá a crítica do filme, ou seja, sobre o modelo de representatividade de mulheres e meninas em nossa sociedade, o qual influencia diariamente a percepção de nosso papel ao difundir (inclusive pelas próprias mulheres que perpetuam o sexismo) uma representação limitada e depreciativa das mulheres, na qual beleza, juventude e sexualidade se tornaram mais importantes do que intelecto, liderança, capacidade e caráter, e o pouco espaço deixado para repensar esse modelo pré-estabelecido. Garotas são diariamente bombardeadas pelas mídias com imagens do que representa uma mulher ideal e, diante da impossibilidade de se encaixar nesse modelo (uma utopia dentro de uma sociedade machista, cheia de retoques, botox e photoshop) e da dificuldade em desconstruí-lo, ao serem reiteradamente objetificadas se auto-objetificam e desenvolvem transtornos alimentares e psicológicos, que culminam muitas vezes em suicídios.
A respeito especificamente da sétima arte, o documentário se debruça sobre os estereótipos propagados por Hollywood e pelos enredos da Disney, os quais são repetitivos ao retratar os homens como heróis e as mulheres como decorativas de historias romanescas, sempre em busca ou a espera do seu príncipe encantado, muitas vezes abordando conflitos com outras mulheres pela disputa do “príncipe”, o que reforça a visão das mulheres como inimigas naturais e incita a competitividade feminina. Além disso, ao retratar mulheres líderes e poderosas sempre as mostram como más, amargas e “solteironas”.
A verdade é que a idade de ouro das mulheres no cinema foi o movimento “Fim Noir”, principalmente no que tange à criação da personagem mais subversiva da época, qual seja, a Femme Fatale, um ataque aos valores sociais dominantes cuja expressão se dá através da chamada “família padrão”. A Femme Fatale vai de encontro ao estereótipo da mulher representada no cinema clássico de Hollywood, no qual as mulheres eram seres passivos, que só atingiriam a felicidade se estivessem em um lar sob a tutela de um homem e com filhos, caso contrário, estariam fadadas à vergonha e solidão. É nesse contexto progressivo, desta forma, que se pôde aferir a importância da Femme Fatale no processo de emancipação da mulher, em detrimento da visão falocêntrica do mundo até então dominante na vida e na arte, ao ser embrião de um novo modelo de mulher norte-americana, e com isso remar contra a maré das mocinhas alegres dos musicais hollywoodianos, típicos do American Way of Life. “Não se fazem mais personagens como antigamente”.
(Voltando ao documentário…)
Tendo como enfoque a sociedade norte-americana, o documentário conta com o depoimento de mulheres importantes para a política e cultura dos EUA, como a exsecretária de Estado Condoleezza Rice, a comediante Margaret Cho e a atriz Geena Davis, e aborda a ridicularização que muitas vezes as mulheres líderes sofrem ao ser alvo de piadas, sexualizadas ou por ter sua competência desacreditada, tendo como exemplo Hilary Clinton (“a qual deveu sua candidatura à presidência ao seu ex-marido”), Dilma Roussef (ex-presidenta do Brasil, mas que na verdade “não passava de uma secretária de Lula” e que precisou ouvir diversas piadas a respeito de sua sexualidade por não ter um marido: “já pensou que louco?”), Sara Palin (ex-candidata à presidência dos EUA que foi extremamente sexualizada), dentre milhares de outros exemplos, reflexos de uma socialização de gênero que acredita que a política e a liderança são atividades masculinas, ocasionando uma verdadeira “aniquilação simbólica”.
Essa ridicularização de figuras poderosas femininas resulta na ausência das mesmas, ilustrada na ínfima representação política feminina (mesmo com as cotas eleitorais de gênero para candidaturas femininas de forma a estimulá-las) o que acarreta um problema gravíssimo: “you cant be what you cant see”, ou seja, ausência de representatividade, alguém em quem se espelhar, uma fonte de inspiração para a menina que tem sonho de ser líder politica mas que por ouvir a vida inteira que não tinha capacidade para isso por ser “coisa de homem” se conforma em ser “bela, recatada e do lar”, no máximo uma primeira dama. É preciso ensinar as nossas filhas a serem as suas próprias modelos, serem a mudança que querem ver no mundo.
Nesse sentido, recomendo fortemente o documentário, por ser um convite à desconstrução desse modelo de representatividade feminina, dessa cultura machista que engolimos diariamente sem nem mesmo digerir, ou seja, um convite à digestão, à reflexão e à desconstrução para uma posterior reprodução de discursos mais igualitários, seja ao nos educar diariamente ou ao educar os nossos filhos e filhas, os quais serão igualmente reprodutores das narrativas (l)imitativas de gênero, caso não as expandamos (dentro e fora).
Ana Luiza Tinoco – Potiguar, atualmente morando em Portugal. Mestranda em Ciências Criminais na Universidade de Coimbra, com foco em criminologia feminista e questões de gênero.

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