O
Leitor
“Cada
um de nós é uma lua e tem um lado escuro que nunca mostra a
ninguém.”
Mark
Twain
O
Princípio da Moralidade e suas armadilhas fustigam nossas mentes em
muitas obras-primas cinematográficas. Uma delas é “Sonata de
Outono”, do genial Ingmar Bergman, outra é “O Leitor” (The
Reader,
2008), filme do talentoso diretor inglês Stephen Daldry, baseado no
livro de Bernhard Schlink, publicado
em mais de trinta idiomas.
Esse grande e elegante filme, silenciosamente arrebatador, completa
em 2019 onze anos e ainda nos paralisa diante do tabu do
analfabetismo, além de sofismas jurídicos, como calar ser sinônimo
de anuir, assentir, aquiescer. A ideologia dos vencedores estabelece
que o preceito legal está acima do moral e, portanto, há
legitimidade na culpabilidade do silêncio contra si mesmo.
O
grande fardo aqui é o segredo-tabu que carrega a personagem
principal. Admitir essa deficiência, seja no âmbito privado, seja
no público, contribuiu de forma determinante para o destino de Hanna
Schmitz.
Para
ler esta resenha, é preciso despojar-se da tensão provocada pelo
chamado “spoiler”, que no meu ponto de vista não tem todo esse
poder para prejudicar a fruição de uma obra. O mestre do suspense
Alfred Hitchcock,
por exemplo, mostrava desde o início do filme o que supostamente
deveria ser conhecido apenas no final do filme. O suspense era
distribuído ao longo da narrativa, provocado por meio de outros
artifícios.
Aqui,
claro, não é intenção atuar como Hitchcock. Pelo contrário, seu
legado nos “autoriza” a investir prontamente no que poderia vir a
ser chamado de ponto alto do filme: a protagonista é iletrada, não
sabe ler e escrever. É por essa razão que originalmente a obra se
chama “Der
Vorleser” (“o leitor em voz alta”), ou seja, trata-se de alguém
que lê para outra pessoa, tal como fazem as mães para seus filhos,
voluntários para deficientes visuais que não sabem ler em braille
ou netos para seus avós, algo corriqueiro no contexto familiar e na
história da humanidade.
Porém,
esse fato nada mais é do que o pontapé da trama, o ponto crucial,
aquele que secretamente prejudica a decisão judicial, ou seja, a
sentença criminal proferida em desfavor de Hanna Schmitz. E apenas
nós sabemos disso, além da ré e do estudante de Direito Michael
Berg, com quem Hanna teve um romance e dele ouviu muita literatura
nos encontros em sua casa, quando sua profissão não lhe trazia
consequências nefastas à sua vida pessoal e a de outras pessoas.
O
tabu do analfabetismo assola toda atmosfera do filme e desde o início
o espectador capta o desconforto da protagonista em relação a isso.
O que o espectador não sabe, a princípio, é que isso irá
repercutir de forma decisiva na trama.
Michael
Berg tem quinze anos, quando, nos anos cinquenta, em Neustadt,
conhece e se envolve secreta e amorosamente com Hanna Schmitz, cerca
de vinte anos mais velha. Quotidianamente, o romance deles se
sustenta com banhos e leitura de livros em voz alta, além de sexo. O
que poderia ser apenas um amor clichê do adolescente pela
balzaquiana, na verdade é um exercício filosófico monumental, do
tamanho da capacidade de o espectador sentir as dores humanas por
meio do cinema.
Porém,
do ponto de vista de Michael, um dia Hanna simplesmente desaparece,
sem deixar rastro algum. O jovem Berg passa a não mais vê-la e o
caso de amor continua existindo apenas no seu universo particular. Na
verdade, Hanna recebe uma promoção no trabalho, mas não pode
assumir o novo cargo devido à incapacidade de ler e escrever.
O
grande susto do filme reside no fato de que anos antes, na década de
quarenta, Hanna tenha trabalhado para a SS, ou seja, a
“Schutzstaffel”, que significa “esquadrilha de proteção”,
Organização paramilitar ligada ao partido nazista e a Adolf Hitler.
Mas
o filme não é apenas isso, ele é de uma riqueza psicológica,
histórica, filosófica e jurídica ímpar. Essa plataforma nos
transporta para o universo da ética e da práxis das decisões
judiciais, dos tribunais de exceção, dos sofismas, das falácias,
das crenças e dos valores compartilhados pelos membros do
Estado-Juiz, ou seja, para a cultura vigente normatizada e aceita de
forma muitas vezes mecânica. Afinal, se está posta como certa, deve
ser boa. Será? Será sempre?
Hanna
não é uma personagem fácil. Kate Winslet, por vezes, a trata de
forma “abrutalhada”, ainda que magistralmente interpretada, pois
na construção dessa mulher, percebemos uma sensualidade contida, o
pavor em seus olhos, o desconforto constante e uma trajetória de
vida marcada pela tragédia. Ela passa dificuldades e igualmente cria
outras dificuldades para si mesma. Compaixão, no filme, só vemos no
jovem e no adulto Michael Berg, interpretado respectivamente por
David Kross e Ralph Fiennes. Observamos, ainda, o renomado ator
alemão Bruno Ganz como o professor Rohl, que percebe o conflito
interno do jovem estudante de Direito Michael Berg.
A
culpa alemã pelo holocausto, pelo nazismo, pelo regime totalitário
é tão marcante que promoveu um momento posterior também
questionável: um tribunal de exceção, que julgou como crimes fatos
que à época em que foram praticados não o eram. Nesse caso, não
houve a aplicação da máxima latina “Nullum crimen, nulla poena
sine praevia lege”, que significa “não há crime, nem pena sem
lei prévia”, que nos remete ao já consagrado Princípio da
Legalidade, que no Direito Penal preceitua que não há crime sem lei
anterior que o defina, nem há pena sem prévia cominação legal.
Ainda
que haja correntes outras, no escopo do Direito Internacional e dos
Direitos Humanos que advoguem a favor do tribunal de exceção contra
os chamados crimes contra a humanidade, como de fato foi o
holocausto, elas não são unânimes. Afinal, para as mazelas do
nazismo não terem ocorrido, todos deveriam ter descumprido as ordens
emanadas pelo Estado.
É
importante alertar para os dois fatos excludentes que compõem o
ponto controvertido acerca do crime que foi julgado como sendo uma
espécie de homicídio qualificado, que no Brasil de hoje teria pena
de reclusão, de doze a trinta anos, como pode ser verificado no
atual Código Penal brasileiro: Art. 121, matar alguém, § 2º, se o
homicídio é cometido de forma qualificada, de determinado modo,
como no inciso IV, à traição, de emboscada, ou mediante
dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a
defesa do ofendido.
Assim,
o dilema resume-se a não permitir que fossem abertas portas para
salvar vidas humanas versus
assegurar que essas pessoas não fugissem (ordem que deveria ser
cumprida pelas guardas da SS). Em suma, trata-se de não deixar
escapar versus
deixar morrer; porém, não foi Hanna quem escreveu o relatório,
como nós já sabemos... O impasse de abrir ou não abrir portas, à
época, respectivamente, configurava-se em descumprir ou cumprir
ordens laborais do regime nazista.
Além
disso, percebemos as nuances e contradições no próprio Michael, em
que o homem ama e o cidadão pune. Pune mesmo? Não foi a própria
Hanna que assim o quis, a fim de camuflar seu analfabetismo e manter
intacta, acerca desse aspecto, sua vida objetiva? Michael amou,
apenas, incondicional e transitivamente. Era tanto amor... “Apenas”
amor, por Hanna e pela história subjetiva que povoou sua
mente-coração por toda uma vida. A “obrigação moral” de
influir no resultado do julgamento e alterar a sentença sem
consentimento da ré teria sido ético sob o ponto de vista
particular? Ora, se a própria Hanna renega seu destino, por quê
Michael deveria macular seu desejo mais sigiloso revelando seu
analfabetismo?
Não
se trata, aqui, de enaltecer algozes, pois no Estado de Direito
tolerância não significa ingenuidade; mas, trazer à discussão o
tema da segurança jurídica, da reserva legal, dos Princípios e da
colisão de princípios... É público e notório que Auschwitz foi o
maior local de assassinatos em massa da história da humanidade.
O
filme tem a exata capacidade de nos mostrar o sentimento aflitivo de
Michael diante do tribunal em que está sendo julgada Hanna. Vemos
esse jovem estudante de forma introspectiva, contemplativa e passiva
sofrer. Esse mesmo Michael segue, a seu modo, assistindo Hanna até o
fim da vida.
É
importante lembrar que, objetivamente, fica evidente no filme, para o
espectador, que a tudo assiste pelos olhos e ouvidos de Michael, a
inocência de Hanna; porém, ela é julgada culpada e recebe como
pena passar uma longa temporada na prisão, o terceiro e comovente
ato deste grande filme.
Busca-se,
ainda, como sugestão, não apenas o filme, mas, sobretudo, o livro O
Leitor, que foi escrito por um renomado jurista e escritor alemão:
Bernhard Schlink. Assista ao filme, leia o livro, discuta em sala de
aula... O Leitor é uma adaptação fiel, em termos de roteiro, assim
como é esteticamente perfeito, visualmente lindo, filmado em
Heildelberg e em Frankfurt, com grandes interpretações, além de
ter concorrido a e ganhado diversas premiações de relevo
internacional.
“Não
importa o que eu penso.
Não
importa o que eu sinto.
Os
mortos continuam mortos.”
Hanna
Schmitz
Maria
Luísa Medeiros
Direito UNI-RN
Membro Cinelegis
Direito UNI-RN
Membro Cinelegis
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